TEXTS / O MAGO , O COWBOY E O MÁGICO - LUCAS ALBUQUERQUE
I. O MAGO

           
          Para o filósofo e antropólogo Marcel Mauss (1872 - 1950), a magia “consegue substituir a realidade por imagens. Não faz nada ou quase nada, mas tudo faz crer”. Ela é por si mesma apaixonada pelo concreto, dedicando-se a conhecer a substância das coisas. Com isso, prepara imagens, esculpindo, modelando, pintando, desenhando, gravando. O mago (palavra oriunda do antigo persa magus, "poder") teria o poder de trazer à luz as qualidades ocultas já inerentes à essência da matéria, abrindo-a para o seu horizonte potencial. Podemos estabelecer um paralelo entre tais termos e a prática escultórica de Michelangelo (1475 – 1564), que trabalhava grandes blocos de mármore pela subtração do excesso na crença em sua habilidade de libertar figuras que estariam ali aprisionadas.

          É certo que, de lá para cá, caminhamos muito no sentido de nos desvencilhar das conformidades estéticas idealistas do gênero clássico, buscando, inclusive, um reentrelaçamento entre arte e magia nas práticas contemporâneas. Fazendo uso de tábuas de cerâmica, o carioca Arthur Palhano se aventura em um procedimento pictórico por escavação, transposto de sua prática em pintura a óleo elaborada ao longo dos últimos anos. Com a colaboração e o acompanhamento da ceramista Karla Portas, o artista troca o pigmento oleoso por engobe, criando gordas massas de barro colorido sobre as quais Palhano cava, camada por camada, como um arqueólogo que delimita seu campo de interesse na busca por um determinado artefato.

          Ainda que a mudança possa parecer simples, já que a técnica do artista sobrevive e se adapta ao meio, as etapas de feitura implicam uma alteração substancial: enquanto a escavação em óleo permite maior controle em relação aos estratos de cor que se transferem para a imagem evocada, a queima da peça altera a paleta cromática do material cru, tornando o objeto final um resultado milimétrico proveniente dos jogos de camadas e do tempo de cozimento. A dupla renuncia ao seu ócio, tornando-se magos na presença do fogo.

          Surgem assim peças que brincam com a relação figura e fundo na ordem de sua própria formação. Afinal, ainda que as formas se sobreponham às camadas de cores sólidas que saltam aos olhos, grande parte delas se formam nas entranhas, na elisão do seu próprio formato, enquanto outras, na supressão do entorno. Entre a mão da ceramista que prepara a tábua, a espátula do artista que escava os estratos e o calor que tudo contrai, vislumbramos a dança de gestos em ziguezague pela superfície — ora fruto do rastro obsessivo da escavação, ora da fina camada de engobe que se dilata e deixa revelar a cor ao fundo, numa belíssima conversa entre duas ordens de vida: a humana e a mineral.

          Faz-nos, ainda, perguntar: pintura ou relevo? A série estabelece um diálogo material e histórico que, diferentemente das telas de Palhano, tem menos a contribuir com a tradição pictórica europeia e mais com as culturas visuais sul-americanas. Em especial, as pré-colombianas, cujo entalhe lembra as escritas imagéticas e pré-cuneiformes em pedra e terracota, como as da cultura Chimu ou, em um campo expandido e de maior extensão, as linhas Nazca, desenhadas no deserto.

II. O COWBOY

          Ao entrarmos no diálogo entre culturas materiais distintas, pressupondo a justaposição de suas imagens, voltemos nosso olhar para as figuras que emergem das séries de Palhano. Para isso, gosto de pensar na alegoria do cowboy, evocada no título de uma das peças e que organiza a separação regente deste texto. É recorrente a aparição de ícones da cultura pop na obra do artista e, nesta série, não é diferente. As tábuas carregam inscrições que remetem a símbolos de jogos de mesa (RPG), capas de discos de jazz, clichês do fim do milênio passado — como o sorvete de bola — ou mesmo o símbolo mortal de veneno, comum nas HQs juvenis.

          Acredito que o cowboy seja um ponto culminante dessa discussão, tendo em vista a maneira como este condensa em sua raiz facetas que, de um modo ou de outro, são inerentes às figuras com as quais Palhano flerta em sua prática. Figura proeminente do imaginário estadunidense e símbolo do crescimento econômico do oeste do país, o homem vaqueiro é popularizado durante o século XIX com a intensificação da cultura de massa — a saber, o rádio, o cinema, a publicidade e as histórias em quadrinhos.

          A profissão que, ao menos desde 1865, era constituída também por homens negros, mexicanos e de ascendência indígena, teve o seu desenvolvimento enquanto ideal mítico ao tornar-se um herói popular e uma das últimas sentinelas no parapeito do americanismo. Em seu individualismo rude, heroísmo migrante e masculinidade adornada, a alegoria utilizada de maneira ostensiva se entrecruza com a política de dominação cultural em imagens de homens brancos e seus cavalos. Elevados a uma escala sobre-humana em meados do século XX, tornaram-se portadores da bandeira do bem na luta contra o mal: defensores da moral puritana americana, dos ideais do trabalho, da defesa da família heteronormativa e das ações de povoamento.

          Tais valores, introduzidos por instituições dominantes da sociedade (como a indústria cinematográfica e seu capital), mostraram-se uma importante ferramenta de expansão e racionalização da hegemonia norte-americana em relação a atores sociais ao redor do mundo. Não há dúvida de que o campo da pintura é, historicamente, um espaço de poder a serviço de uma cultura masculina, em grande parte heteronormativa, com a qual Arthur flerta, mas também critica. A maneira como lida com símbolos tão banais e cotidianos é explicada pela passionalidade que envolve sua pesquisa em torno de um passado oitocentista e noventista, filtrada pelas lentes das produções cinematográficas ou presente nas capas de LP que, amiúde, preenchem suas telas.

          Assim como o crítico que vos escreve, Palhano é um dos impactados culturalmente por um projeto de dominação cultural estadunidense já em crise ao fim do último milênio. Tal impotência fálica aflora na presença das figuras que representa: fadadas à impossibilidade de gozar de sua glória, repousam na sombra de uma nostalgia melancólica. Despidas do anseio de comunicar boas notícias do futuro, denunciar as agruras contemporâneas ou reavivar mitos, elas transitam entre paisagens sugestivas, exercícios formais ou agrupamentos de memórias esparsas, lacunares. Assim surge o cowboy do artista: representado apenas por seu chapéu, isolado, pairando em meio ao vazio. Ausente e cansado de galopar, ele se despe do peso de seu mito.

III. O MÁGICO

          Em sua etimologia, as palavras mago e mágico derivam da mesma raiz linguística. Contudo, o entendimento moderno do segundo termo vem do francês magique, utilizado para denominar a atividade tornada popular na França do século XVIII por nomes como Jean Eugène Rober Houdin (1805 - 1871). Enquanto o mago tem seu fazer atrelado às forças da natureza, o mágico opera com práticas de ilusionismo ligadas às habilidades motoras. Seus truques visam fascinar e convencer o público de uma ação que foge ao comum. Ele é, antes de mais nada, um ilusionista, que pode ser visto tanto como um mero charlatão ou, como prefiro, aquele que se recusa a deixar de encantar o mundo. Por meio de ardis, o mágico suspende a ordem da razão.

          Já a palavra imagem, segundo uma antiga etimologia, provém do latim imitari ("copiar, fazer semelhante"). O historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant afirma que foi só após um longo processo entre os séculos VI e V a.C. que a imagem passou a ser vista como um artifício imitativo que reproduz, ainda que sob um falso semblante, a aparência exterior das coisas. Conduzia-se, assim, a passagem entre a compreensão da figuração material como presencificação do invisível à pura imitação da aparição de algo ausente. A imagem nada mais era do que uma ilusão figurativa de um modelo ideal, platônico, de uma forma divina e absoluta. O mundo em si era como um grande teatro de ilusões e o pintor, canalizador de tais modelos.

          Passados séculos e diversas teorias da imagem, é curioso que ela ainda carregue consigo uma compreensão que referencia um externo: por um lado, está intimamente ligada a um referente; por outro, sua leitura depende do receptor que a observa. O objeto e sua representação continuam conectados, ainda que pelas bordas difusas de um inconsciente subjetivo. Em suas figurações, artistas como Palhano não produzem um figurativismo que almeja uma imersão na cena representada, mas, mesmo assim, seduzem o espectador em um ato que recria cenas de um passado montado, editado. Sem cinismos, entretanto: alerto desde já que não se trata de um ato de charlatanismo, mas de um mergulho profundo em um inconsciente que se deixa entrever pelas brechas de figuras ordinárias.

          Afeito à própria beleza de seus truques, Palhano maneja as camadas de suas telas e tábuas sem o desejo de incorporar o modelo perfeito, arquetípico, que talvez só um mago pudesse conjurar. Está satisfeito com as farpas de suas criações.



THE MAGICIAN, THE COWBOY, AND THE MAGICAL

THE MAGICIAN

          For the philosopher and anthropologist Marcel Mauss (1872 - 1950), magic “manages to replace reality with images. It does nothing or almost nothing, but makes everything seem believable.” Magic is passionately devoted to the concrete, seeking to understand the substance of things. In this way, it prepares images, sculpting, molding, painting, drawing, and engraving. The magician (a word derived from the ancient Persian magus, meaning "power") possesses the ability to bring forth the hidden qualities already inherent in the essence of matter, revealing its potential horizon. We can draw a parallel between these terms and Michelangelo's (1475 – 1564) sculptural practice, in which he worked large blocks of marble by subtracting excess, believing he could liberate figures trapped within.

          It is certain that since then we have made significant strides toward freeing ourselves from the idealistic aesthetic norms of classical genres, even seeking a reweaving of art and magic in contemporary practices. Using ceramic boards, the Rio de Janeiro artist Arthur Palhano embarks on a pictorial process of excavation, transitioning from his oil painting practice developed over recent years. With the collaboration and guidance of ceramicist Karla Portas, the artist replaces oily pigment with engobe, creating thick masses of colored clay, which Palhano excavates, layer by layer, like an archaeologist delineating his field of interest in search of a specific artifact.

          Although this change may seem simple, as the artist's technique survives and adapts to the medium, the stages of creation imply a substantial alteration: while oil excavation allows greater control over the layers of color that transfer to the evoked image, the firing of the piece alters the color palette of the raw material, making the final object a millimetric result of layer interplay and firing time. The duo renounces idleness, becoming magicians in the presence of fire.

          Thus, pieces emerge that play with the relationship between figure and ground in the order of their own formation. After all, while the forms overlap the solid layers of color that leap to the eye, many of them are formed in the depths, in the elision of their own shape, while others arise from the suppression of the surroundings. Between the hand of the ceramicist preparing the board, the artist's spatula excavating the strata, and the heat that constricts everything, we glimpse a zigzag dance of gestures across the surface—sometimes a result of the obsessive trace of excavation, sometimes the fine layer of engobe that expands to reveal the underlying color, in a beautiful conversation between two orders of life: the human and the mineral.

          This also prompts us to ask: painting or relief? The series establishes a material and historical dialogue that, unlike Palhano's canvases, contributes less to the European pictorial tradition and more to South American visual cultures. In particular, pre-Columbian cultures, whose carvings resemble the imagistic and pre-cuneiform writings in stone and terracotta, such as those from the Chimu culture or, in a broader field, the Nazca lines drawn in the desert.

THE COWBOY

          As we enter into the dialogue between distinct material cultures, assuming the juxtaposition of their images, let us turn our gaze to the figures that emerge from Palhano's series. For this, I like to think of the allegory of the cowboy, evoked in the title of one of the pieces and organizing the guiding separation of this text. The appearance of pop culture icons in the artist's work is recurrent, and in this series, it is no different. The boards carry inscriptions that refer to symbols from tabletop games (RPG), jazz album covers, clichés from the end of the last millennium—such as the ice cream cone—or even the deadly symbol of poison, common in youth comics.

          I believe the cowboy is a culminating point in this discussion, given how it condenses facets that are, in one way or another, inherent to the figures with which Palhano flirts in his practice. A prominent figure in the American imagination and a symbol of the economic growth of the western United States, the cowboy became popularized during the 19th century with the intensification of mass culture—namely, radio, cinema, advertising, and comic books.

          The profession, which since at least 1865 included Black, Mexican, and Indigenous men, developed as a mythical ideal, becoming a popular hero and one of the last sentinels at the edge of Americanism. In its rugged individualism, migratory heroism, and adorned masculinity, the allegory used overtly intertwines with the politics of cultural domination in images of white men and their horses. Elevated to a superhuman scale in the mid-20th century, they became bearers of the flag of good in the fight against evil: defenders of American puritan morality, ideals of work, family heteronormativity, and settlement actions.

          Such values, introduced by dominant societal institutions (such as the film industry and its capital), proved to be an important tool for the expansion and rationalization of American hegemony over social actors around the world. There is no doubt that the field of painting is, historically, a space of power serving a predominantly heteronormative masculine culture, with which Arthur flirts but also critiques. The way he engages with such banal and everyday symbols is explained by the passion surrounding his research into an 18th and 19th-century past, filtered through the lenses of cinematic productions or present in the LP covers that frequently fill his canvases.

          Like the critic writing to you, Palhano is one of those culturally impacted by a project of American cultural domination that was already in crisis at the end of the last millennium. This phallic impotence surfaces in the presence of the figures he represents: doomed to the impossibility of enjoying their glory, they rest in the shadow of a melancholic nostalgia. Stripped of the desire to communicate good news for the future, denounce contemporary hardships, or revive myths, they traverse suggestive landscapes, formal exercises, or assemblages of sparse, fragmentary memories. Thus emerges the artist's cowboy: represented only by his hat, isolated, hovering in the void. Absent and weary of galloping, he sheds the weight of his myth.

III. THE MAGICAL

          In its etymology, the words magician and magical derive from the same linguistic root. However, the modern understanding of the latter term comes from the French magique, used to denote the activity popularized in 18th-century France by figures like Jean Eugène Robert-Houdin (1805 - 1871). While the magician’s craft is linked to the forces of nature, the magical one operates with illusionistic practices tied to motor skills. Their tricks aim to fascinate and convince the audience of an action that defies the ordinary. He is, first and foremost, an illusionist, who can be seen as either a mere charlatan or, as I prefer, someone who refuses to stop enchanting the world. Through cleverness, the magician suspends the order of reason.

          The word image, according to an ancient etymology, derives from the Latin imitari ("to copy, to make similar"). French historian and anthropologist Jean-Pierre Vernant asserts that it was only after a long process between the 6th and 5th centuries B.C. that the image came to be viewed as an imitative artifice that reproduces, even under a false semblance, the external appearance of things. Thus, the transition was made from understanding material figuration as a manifestation of the invisible to the mere imitation of the appearance of something absent. The image was nothing more than a figurative illusion of an ideal model, a Platonic, divine, and absolute form. The world itself was like a great theater of illusions, with the painter as the channeler of such models.

          Centuries and various theories of the image later, it is curious that it still carries a comprehension referencing an external: on one hand, it is closely tied to a referent; on the other, its interpretation depends on the observer. The object and its representation remain connected, even through the diffuse edges of a subjective unconscious. In their figurations, artists like Palhano do not produce a figurativism that aims for immersion in the represented scene, yet they still seduce the viewer in an act that recreates scenes from a constructed, edited past. Without cynicism, however, I warn that this is not an act of charlatanism, but a deep dive into an unconscious that reveals itself through the gaps of ordinary figures.

          Fond of the very beauty of his tricks, Palhano manipulates the layers of his canvases and boards without the desire to incorporate the perfect, archetypal model that perhaps only a magician could conjure. He is satisfied with the splinters of his creations.

-LUCAS ALBUQUERQUE